Escrito por: José Celso Cardoso Jr.* • Publicado em: 17/11/2020 – 12:18 • Última modificação: 17/11/2020 – 12:31
No artigo anterior dessa série, fizemos vários apontamentos para desmistificar a falsa ideia de que o Estado brasileiro é caro, gasta muito e gasta mal com servidores públicos, e suas remunerações são discrepantes em relação ao setor privado, caracterizando um oceano de privilégios.
Ali, mostramos que os problemas de remuneração, alardeados pela atual área econômica do governo por meio da grande mídia e base parlamentar, são a exceção e não a regra dentro do funcionalismo público, em qualquer recorte analítico que se queira utilizar.
Adicionalmente, sustentamos a tese de que é o crescimento econômico robusto ao longo do tempo, e a arrecadação tributária que lhe corresponde, que garantem as condições de incorporação, custeio e profissionalização de novos servidores à máquina pública, e não o corte quantitativo indiscriminado de funcionários ou a precarização de suas condições, remunerações e relações de trabalho – tudo isso, parte dos objetivos explícitos da PEC 32/2020 – que estimularão o desenvolvimento com equidade num país ainda tão heterogêneo e desigual como o Brasil.
Pois bem, neste artigo de hoje, as provas de que o Estado brasileiro não é caro podem ser encontradas – e entendidas – pelo seguinte cruzamento de informações:
i) a despesa global com o funcionalismo público no Brasil é baixa e está estável como proporção do PIB já há vários anos, em todos os níveis federativos (gráfico 1);
ii) a despesa com pessoal em âmbito federal jamais ultrapassou o limite prudencial da LRF desde 2000;
iii) a despesa com pessoal em âmbito federal é na verdade o terceiro maior componente do gasto público total (e não o segundo, como afirmam determinados segmentos), estando bem abaixo do gasto financeiro e tendo ritmo de crescimento muito menor que aquele [1];
iv) apesar de baixa, quando medida em relação à arrecadação tributária, à massa salarial do setor privado e ao produto interno bruto, a despesa com pessoal do setor público é ainda insuficiente para fazer frente às necessidades de mais pessoal ocupado em setores cruciais das políticas públicas, ainda mais considerando o passivo brasileiro em termos de heterogeneidades regionais, desigualdades sociais e necessidades nacionais em vários âmbitos da contemporaneidade; e
v) a despesa global de pessoal, considerando os três níveis da federação e os três poderes da União, não possui distribuição interna uniforme e, pelo contrário, esconde níveis muito díspares de remunerações e condições de trabalho por esfera de governo e esfera de poder.
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Avançando, portanto, sobre o último citado, vemos que a evolução das remunerações no setor público brasileiro como um todo, em termos reais, entre 1986 e 2018, foi maior no poder judiciário, cujo patamar saltou de aproximadamente R$ 6 mil para R$ 12 mil por mês em média. Em segundo lugar está o poder legislativo, cujo patamar oscilou de R$ 7 mil para R$ 6 mil em média por mês, seguido pelas remunerações do poder executivo, que oscilaram sempre abaixo dos R$ 4 mil de média mensal ao longo de todo o período considerado (gráfico 2). Ou seja, o poder executivo, responsável pelo atendimento direto à população, é o que recebe menos (em média mensal real) que os demais poderes, e o que poderá ser o mais atingido – negativamente – pela reforma administrativa pretendida pelo atual governo, congresso e mídia.
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Quando olhamos essas informações pelas grandes regiões do país, vemos que as remunerações do poder executivo federal saltaram, entre 1986 e 2018, de um patamar relativamente homogêneo entre regiões, variando entre R$ 4.500 (regiões norte e centro-oeste) e R$ 5.500 (região sul) para um patamar mais elevado e mais disperso, no qual despontam novamente as regiões norte e centro-oeste com as menores remunerações médias (ao redor de R$ 7.500 cada uma) e novamente a região sul com patamar remuneratório na casa dos R$ 9.500 de média mensal.
Em termos municipais, por sua vez, as diferenças são ainda maiores entre este nível federativo e os demais. Há um declínio de remunerações que, neste caso, dura até 1994, e embora haja tendência de crescimento médio real das remunerações no poder executivo municipal a partir deste ponto, isso acontece em patamares ainda menores e muita dispersão entre as regiões. De tal modo que no último ano da série, em 2018, os funcionários municipais das regiões sul e sudeste possuíam rendimentos médios mensais de pouco mais que R$ 3 mil cada, enquanto nos municípios das regiões norte e nordeste o padrão remuneratório era de apenas pouco mais que R$ 2 mil (gráfico 3). Tais valores, diga-se de passagem, são inferiores ao salário real médio do setor privado nacional, segundo dados do IBGE.
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Na outra ponta da distribuição, reside um segmento de servidores públicos que pode ser considerado a elite salarial do funcionalismo. Este segmento, de fato, carece de maior visibilidade pública e controle social, até porque, embora seja a exceção e não o padrão remuneratório no setor público, tais casos vêm sendo usados e manipulados pelo atual governo, congresso e grande mídia como justificativa (ilegítima, ilegal e imoral) para aprovação da PEC 32/2020, não raras vezes em comparações espúrias com as remunerações do setor privado.
Diante disso, onde estão os privilégios de remuneração no serviço público federal? Valendo-se do teto constitucional de remuneração do funcionalismo público [2], foram considerados os vínculos cuja média mensal das remunerações, em cada ano, foi superior à média mensal do subsídio mais alto recebido por um ministro do STF. Utilizando esse critério, a quantidade vínculos com remuneração acima do limite constitucional, ao contrário do que muitas vezes se imagina, está muito longe de ser exorbitante. Trata-se de um grupo minoritário, mas ainda assim uma elite em termos remuneratórios (gráfico 4).
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Aqui, não se trata de argumentar que a proporção de vínculos públicos federais com remuneração acima do teto do funcionalismo seja irrelevante; trata-se, sim, de dar ao fenômeno a relevância e o peso que ele de fato possui. Isso feito, percebe-se muito claramente que, dentro de cada um dos poderes, há grande concentração dos vínculos com remuneração acima do teto em alguns poucos órgãos, a saber:
i) no poder judiciário e sistema de justiça, a concentração está localizada no MPU (Ministério Público da União) e TRT (Tribunal Regional do Trabalho);
ii) no poder legislativo, ela se encontrava na Câmara dos Deputados em 2015, mas migra para o TCU (Tribunal de Contas da União) em 2018; e
iii) no poder executivo, a concentração reside no MRE (Ministério das Relações Exteriores)[3].
Em suma, a elite salarial do funcionalismo público federal é pequena e facilmente identificável: são procuradores, desembargadores, juízes, dirigentes do serviço público federal, deputados, senadores, diplomatas, ministros e secretários de ministérios – categorias profissionais que, várias delas, não estão sequer incluídas na proposta de reforma administrativa enviada ao Congresso. O que levanta muitas dúvidas sobre se o governo, de fato, tem interesse em atacar os privilégios do serviço público nacional.
Ou seja, é fundamental realizar ajustes remuneratórios no setor público, levando em consideração os determinantes e as especificidades presentes em cada nível federativo de governo (Federal, Estadual e Municipal), bem como atentando para as situações discrepantes em cada poder da União (Judiciário, Legislativo e Executivo). Mas a maioria dos problemas remuneratórios discrepantes poderia ser resolvido simplesmente aplicando-se, sem exceções, o teto remuneratório do setor público a cada nível da federação e poder da república. Além disso, é preciso eliminar ou diminuir drasticamente os adicionais de remuneração que muitas vezes se tornam permanentes em vários casos, distorcendo para cima os valores efetivamente pagos a uma minoria de servidores e funções privilegiadas.
Referências:
[1] O primeiro componente do gasto público global é o gasto previdenciário, supostamente equacionado após três grandes reformas previdenciárias de cunho fiscal ao longo dos últimos anos.
[2] O valor mensal médio do maior subsídio recebido por um ministro do STF em 2018, corrigido pelo INPC de dezembro de 2019, foi de R$ 40.501,00. Todas as remunerações médias também foram consideradas a preços de dezembro de 2019.
[3] No caso do MRE, é provável que essa alta incidência se deva, em parte, ao grande número de servidores (diplomatas, oficiais de chancelaria etc.) trabalhando no exterior e recebendo seus vencimentos e gratificações em moeda estrangeira, o que, considerando o valor atual da moeda nacional, redunda em remunerações elevadas – acima do teto constitucional – em moeda local.
imagem: montagem ciranda.net (disparidade salarial)
*José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo.
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